A grande maioria dos atuais grupos concessionários de veículos de passeio no Brasil tem origem em empresas familiares e muitos iniciaram nas décadas de sessenta, setenta e hoje se consolidam com a terceira geração da família. Praticamente, todos começaram representando uma única marca: Volkswagen, Chevrolet ou Ford, depois veio a Fiat. Hoje, há grandes grupos que representam várias marcas ao mesmo tempo, com dezenas de concessionárias, mas também, empresas familiares que se mantiveram fiéis a uma única marca e cresceram dentro de sua representação exclusiva.
Chegaremos a uma nova fase no setor, em que os motores a combustão interna conviverão por décadas com veículos elétricos, híbridos e células de combustível. Haverá formas diferentes de fazer negócios, em um modelo de representação de marcas que, talvez, não sobreviva no futuro. Tudo vai mudar, desde o comportamento e demandas do consumidor, até a tecnologia e o modo de ganhar dinheiro no mercado automobilístico.
DUAS REFLEXÕES FUNDAMENTAIS SOBRE UM NOVO CENÁRIO NO SETOR AUTOMOTIVO
- Estariam as montadoras no Brasil preparadas para atuar em um mercado muito diferente daquele dos países desenvolvidos, com produtos para os quais não há fronteiras e com novas tecnologias que podem não suceder em alguns locais?
- Estariam os grupos concessionários conscientes de que as redes perderão importância na cadeia de valor, no futuro?
Para as duas perguntas a resposta é provavelmente, sim. Contudo, a governança e gestão dos negócios precisa se adequar, estrategicamente, ao que vem pela frente e nesse ponto afirmo que boa parte dos grupos concessionários ainda não fez a lição de casa (algumas montadoras também não). Mais do que implementar processos confiáveis de governança e gestão, os comitês independentes de estratégia assumirão um papel fundamental para o setor de distribuição de veículos.
Inicialmente, ao falar em governança corporativa devo explicar o conceito que equilibra as relações entre sócios, administradores, gestores e no caso das concessionárias de veículos, a montadora. Isso faz com que a estrutura de governança do negócio seja um pouco diferente das demais empresas de capital aberto ou fechado. A começar pelo “propósito”, pois as concessionárias são espelhos e representam os valores e princípios da marca concedente.
Embora uma concessionária de veículos não seja uma empresa elegível a abertura de capital em bolsa de valores, a prática de uma boa governança corporativa é fundamental para que o negócio possa evoluir e criar valor para os acionistas e para a montadora.
Governança corporativa em um grupo concessionário de veículos é um sistema e processo que monitoram e fiscalizam a gestão e os princípios de relacionamento e condução do negócio. Por meio das boas práticas da governança, a empresa tem o seu “Norte estratégico”, assegura o alinhamento dos interesses e os princípios estruturais e operacionais que garantem a confiança no negócio e nas pessoas, ética na condução e na comunicação, transparência na disponibilização de dados para as partes interessadas, transparência de ação e responsabilidade com as novas demandas socioambientais e porque não dizer, com o ESG.
Um dos pontos de ruptura em toda essa cadeia de valor de governança e gestão está na relação entre a concedente e as concessionárias, em que a transparência de dados nem sempre se observa. A montadora, por contrato, pode realizar auditorias nas concessionárias, enquanto estas não podem auditar a concedente. Outro ponto, muitas vezes nebuloso está no princípio da equidade de tratamento.
Não é excesso afirmar que há algum despreparo entre as partes no relacionamento e na aplicação da boa governança corporativa. Assim, se olharmos para os conceitos, princípios e práticas da Governança Corporativa do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa) e os sobrepusermos no negócio de distribuição de veículos no Brasil, teremos dificuldade para encaixar algumas peças. Muitas montadoras possuem sólida governança corporativa, mas às vezes pecam em alguns princípios no momento de envolver um de seus principais “stakeholders”, a rede de concessionárias. Assim, comitês de avaliação e riscos precisam ser aprimorados.
Do lado dos grupos concessionários é chegado o momento de atuar estrategicamente, olhando para o futuro, sem deixar de fortalecer o negócio no presente. Deve-se implementar uma boa governança corporativa e caso o grupo concessionário já tenha passado por esse processo, incluindo a formação dos sucessores e até mesmo a própria sucessão, recomendo reavaliar as condições da governança para um novo e iminente cenário.
Enquanto a gestão do grupo concessionário planeja, executa, age, controla toda a operação e se relaciona com a concedente, uma governança corporativa específica para o negócio de concessionárias deve fiscalizar a gestão, seja por conselho consultivo independente, seja pelo conselho familiar capacitado para isso, ou pela formação de um conselho misto. Contudo, é fundamental que a estrutura viabilize o trabalho de comitês independentes de auditoria e fiscal, comitê de risco e principalmente, o comitê de estratégia, o qual deverá olhar para uma descentralização dos investimentos com a finalidade de proteger o grupo e os acionistas de um futuro incerto no negócio de distribuição de veículos no Brasil. Em tempo, o negócio não irá acabar, mas irá mudar muito nos próximos anos.
Por fim, não menos importante, o pilar de sustentação das boas práticas de governança corporativa composto pelas normas de conduta e ética do negócio, as quais, de agora em diante precisam conjugar, também, os verbos do ESG.
Orlando Merluzzi (*)
(*) Conselheiro independente, estrategista, mentor, consultor e sócio-gestor na MA8 Consulting Group, atua no mercado automobilístico há mais 36 anos.